Em abril, o cooperativismo de transporte completou 20 anos, levando o modelo cooperativista para o coração das cadeias de logística e o transporte de passageiros. São duas décadas em que o Ramo cresceu, evoluiu e se consolidou, passando por desafios econômicos e transformações tecnológicas.

O setor de transportes é cada vez mais importante para a economia brasileira. Segundo dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT), o segmento registrou aumento de 11,4% em 2021.

A transformação digital também está mudando muita coisa no setor. A revolução mais evidente é a ascensão dos aplicativos de transporte individual e coletivo, alterando a lógica das relações de consumo e trabalho no ramo. Novas tecnologias surgem a todo instante, e os veículos elétricos emergem como uma forte tendência para o futuro próximo, por exemplo.

Olhando para a frente

É nesse contexto que o cooperativismo de transporte se desenvolve: atuando em um setor que cresce, enfrentando desafios impostos pela pandemia e absorvendo inovações de um mundo conectado.

Buscando entender quais são as principais perspectivas para o futuro das cooperativas de transporte, fomos atrás dos pontos de vista de três especialistas:

  • David Duarte, assessor de Relações Institucionais OCB/ES.
  • Evaldo Matos, coordenador nacional do Ramo Transporte e presidente da Confederação Nacional do Transporte Cooperativo (CNTCOOP).
  • Fernando Lucindo, advogado especialista em direito cooperativo e digital.

Panorama

O Anuário do Cooperativismo de 2021, produzido pela Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), registrou 984 cooperativas de transporte ativas junto à entidade. Somadas as instituições somam quase 90 mil cooperados e mais de cinco mil colaboradores.

O estado de Minas Gerais é o mais prolífico para as cooperativas de transporte: são 156 coops mineiras, compostas por mais de 30 mil associados e mais de 1.700 empregados.

O cooperativismo de transporte também pode ser dividido por segmentos internos. O levantamento da OCB revela a seguinte distribuição de cooperativas dentro das distintas áreas:

  • Transporte rodoviário de cargas: 42,7%
  • Transporte coletivo de passageiros: 38,0%
  • Transporte individual de passageiros: 14,7%
  • Transporte náutico de cargas: 0,6%
  • Transporte aéreo de cargas: 0,1%

Um ramo em fase de crescimento

O relatório Um olhar atento ao transporte evidencia que esse é um setor que cresce continuamente. Como vimos, em 2021 o segmento apresentou crescimento econômico de 11,4%, valor consideravelmente maior do que os 4,6% do PIB geral.

Mesmo com o setor ganhando espaço, o Anuário do Cooperativismo referente a 2020 registrou  redução no número de cooperativas, cooperados e colaboradores. Para Fernando Lucindo, esse movimento se explica pela alta segmentação do ramo, “tendo sua maior representação nas cooperativas de transportes de cargas e transporte coletivo de passageiros”:

“Pude acompanhar durante esses dois anos de pandemia cooperativas que entraram em crise, principalmente por dependerem de um segmento específico dentro do ramo transporte, como as de transporte escolar. Com a suspensão das aulas e os cooperados sem renda, muitas cooperativas desse segmento não se recuperaram”, explica.

Consequências

David Duarte acompanha o raciocínio. Ele explica que muitas cooperativas de transporte de passageiros precisaram interromper suas operações. “Infelizmente algumas cooperativas liquidaram, assim como processos de incorporações ou fusões tiveram que ser realizados para que várias cooperativas de transporte pudessem sobreviver”, relata.

“A redução do número de cooperativas, cooperados e colaboradores trazida pela OCB em seu anuário, está muito ligada ao que aconteceu com o seguimento do transporte de passageiros. Essa vertente do Ramo foi altamente impactada pelas restrições que ocorreram no final de março de 2020 devido à pandemia, e nesse cenário muitas pessoas acabaram abandonando a atividade”, completa David.

A retomada

Evaldo Matos argumenta, entretanto, que apesar da queda do número de cooperativas, as que seguem em operação tiveram aumento no faturamento. Isso se dá pelo aumento na profissionalização da gestão das instituições:

“A OCB tem trazido muito disso, através dos estudos técnicos, de visitas e missões técnicas internacionais, das ações que têm sido feitas de aproximação das academias e instituições de ensino. O mercado é que dita o nosso negócio. O consumidor mudou o comportamento e nós precisamos mudar o das nossas organizações”.

Lucindo aponta que a retomada do crescimento no cooperativismo de transporte passa pela formação de associações de motoristas. O advogado enxerga que eles “perceberam que somente como sociedade cooperativa ganhariam força como organização e empresa, com um modelo de negócio democraticamente gerido e justo para todos”.

Cargas de otimismo

O contraponto de Evaldo Matos é que, mesmo com o aumento do custo de operação (devido à alta dos combustíveis, por exemplo), o mercado é muito promissor. “Existe um déficit muito grande de ferrovias e hidrovias no país. Fatalmente, o que existe de maior força de transporte de carga no país, são rodovias”.

David se mostra otimista com o ritmo de crescimento das cooperativas que atuam no transporte de cargas, tanto que elas estão atraindo cada vez mais transportadores autônomos.

O futuro do trabalho

A pandemia evidenciou a importância do trabalho dos entregadores e levantou questionamentos sobre suas condições. Fernando Lucindo avalia que a resposta para a precarização pode estar justamente na adoção do modelo cooperativista:

“Hoje vemos o quanto os entregadores são importantes e também o quanto trabalham, se arriscam e como os motoristas de aplicativo são reféns e explorados pelos grandes apps. A organização como empresa cooperativa é o caminho natural para melhorar as condições de trabalho e valorizar esses profissionais”.

David acredita que o individualismo ainda é uma barreira para que o modelo cooperativista ganhe espaço na modalidade. Mas entende que a organização desses entregadores por meio do processo do cooperativismo pode contribuir para melhores condições, “proporcionando, por meio do processo cooperativo, a estruturação de um aplicativo próprio, dentre várias outras perspectivas”.

Na visão de Evaldo, o cooperativismo brasileiro está preparado para assumir as novas demandas dos consumidores, com investimentos nas plataformas digitais, melhorando as condições de trabalho. “Durante a pandemia, o volume de entregas de pacotes aumentou significativamente”, argumentou o coordenador do Ramo.

Lições da pandemia

A pandemia mexeu com a lógica econômica de diversos setores, provocou a inovação e acelerou o processo de digitalização dos negócios. O cooperativismo de transporte também pode tirar aprendizados a partir das dificuldades enfrentadas no período.

David aponta que a maior lição que fica é a necessidade de diversificar “diante das oportunidades já existentes como transporte de cargas fracionadas, e-commerce, a inserção em possibilidades de mercados como o transporte de passageiros por meio de aplicativos”.

Lucindo reforça esse ponto importante: diversificar é fundamental, “seja internamente ou através da intercooperação com outras cooperativas”. Isso só será possível com a adequação às novas tecnologias.

“As conjunturas da sociedade e consequentemente dos mercados estão mudando, impulsionadas por tecnologias que têm mudado nossa forma de agir, conviver e também consumir”, argumenta. “Como estarão as cooperativas daqui uns anos? Vai depender da atitude que terão hoje”.

Gestão e intercooperação

O investimento em melhorar os processos de gestão das cooperativas no setor pode fazer a diferença, diz David. Além disso, a união das cooperativas representa um diferencial. Por meio da intercooperação, fusões e aquisições, as coops potencializam e otimizam suas operações.

A intercooperação também pode ser compreendida na prática. Evaldo exemplifica: “a Coopmetro fez uma parceria com as cooperativas de táxi da região para fazer transporte de encomendas para plataformas digitais de marketplace. Esse é um grande negócio”.

“É importante que nosso discurso de intercooperação se aproxime o máximo possível da prática. A integração dos ramos, e não somente a intercooperação entre as cooperativas de transporte. O cooperativismo precisa  ser autossustentável. As cooperativas de transporte precisam pensar que o nosso mercado é o embarcador do agronegócio. Que o banco nosso é o banco cooperativo”.

Foi a fim de promover a intercooperação que surgiu o NegóciosCoop, uma plataforma digital forjada para eliminar as barreiras enfrentadas pelas coops nos quatro cantos do Brasil na hora de fechar negócios. Com missão de ajudar as cooperativas a superar dificuldades impostas pela pandemia, a plataforma atua como um e-commerce cooperativista, incentivando a união do setor.

Das dificuldades às oportunidades

Se as novas tecnologias representam desafios para a adaptação e indicam a necessidade de cooperativas com modelo de negócios mais integrado para acompanhar as inovações, também surgem oportunidades. Para isso, é imprescindível que haja investimento em aperfeiçoamento e mudança cultural nas coops por meio de educação e da busca pela inovação.

“A palavra de ordem é investir na transformação digital. Estamos passando por uma importante mudança conjuntural, de adaptar ao digital. Se integrar a novas tecnologias, mais que criar oportunidades, será fundamental para continuidade e existência das cooperativas”, é o diagnóstico de Fernando Lucindo.

Regulamentações

Além das dificuldades impostas pelo cenário econômico e pela pandemia, as cooperativas também precisam superar a burocracia. David Duarte cita a complexidade da legislação, seja no campo tributário, seja no campo societário, e a falta de linhas de crédito adequadas como importantes desafios que as coops do ramo têm de superar.

“Em relação ao transporte de cargas, temos hoje um cenário em que a regulamentação é realizada pela ANTT. Mas, referente ao transporte de passageiros, essa regulamentação envolve legislações nacionais, estaduais e municipais. Isso torna o cenário em muitos momentos, até para o desenvolvimento de novas atividades, bem complexo”.

No ritmo do agro

O agronegócio brasileiro se apresenta como um forte aliado para as cooperativas de transporte, ressalta Evaldo. “Com o crescimento do agronegócio, o transporte cresce junto, tanto o de carga quanto o de passageiros, porque gera negócio. Assim, você tem uma economia aquecida, e a logística é fundamental para a economia do país”.

É necessário que o consumo do país seja visualizado como uma linha de produção: “o agronegócio depende do transporte, porque ele é um elo dessa cadeia. Mas o crédito também faz parte dessa cadeia. Não dá pra ver o agronegócio sem transporte, sem crédito, assim como não dá pra ver transporte sem agro. É necessário sair das cápsulas de ramos e fazer uma interação maior”.

Vislumbrando horizontes digitais

Já que a transformação digital é inevitável, é necessário saber como as novas tecnologias vão afetar o futuro dos negócios no cooperativismo de transporte. Aqui no CoxexãoCoop, já vimos como os dados podem ser importantes aliados para a gestão das cooperativas.

Para David Ribeiro, a transformação digital traz inúmeros benefícios aos negócios, tais quais:

  1. Aumento da lucratividade e produtividade
  2. Redução de custos
  3. Menos gargalos nos processos
  4. Melhoria de comunicação
  5. Tomadas de decisões baseadas em informações precisas

Fernando Lucindo aponta que “já vivemos na Era dos Dados” e o cooperativismo não pode ficar para trás nessa questão. Assim, uma cooperativa deve “reconhecer a importância dos dados que produz e saber como aproveitá-los estrategicamente, em proveito do negócio cooperativo e dos próprios cooperados. Isso é de suma importância para as cooperativas de transporte, independente do segmento”.

Blockchain

Lucindo acredita que a tecnologia blockchain, aliada ao desenvolvimento da inteligência artificial, é a inovação tecnológica mais disruptiva para os negócios desde o advento da internet. Sua adoção deve representar um novo e longo salto tecnológico em poucos anos, aponta o advogado:

“Obviamente, essa adoção demanda adaptação e convergência com novos conceitos e valores. Para as cooperativas, as possibilidades são imensas. Desde sua organização em DAO’s utilizando Governance Tokens à exploração inteligente dos próprios dados através da Web3, digitalização de seus ativos em Security Tokens, viabilização dos negócios com Utility Tokens, transações com criptomoedas, integração com ambiente Metaverso, NFT’s. Enfim, um sem-número de possibilidades que ainda sequer vislumbramos”.

Mais especificamente dentro do ramo de transportes, o “avanço da digitalização do mercado já apresenta oportunidades. É possível, por exemplo, desenvolver uma solução em blockchain para o setor logístico funcionando como uma espécie de ‘sistema de contabilidade digital’, o DLT (Distributed Ledger Technology)”.

Essa tecnologia é uma rede blockchain para o transporte de cargas, que pode, por exemplo, relata Lucindo:

  • Melhorar a confiabilidade de toda cadeia logística
  • Aprimorar a gestão de recursos
  • Realizar o rastreamento e armazenamento de dados seguros
  • Efetuar transações
  • Auxiliar no gerenciamento de riscos
  • Ajudar no controle de cargas e estoque

Cooperativismo de plataforma

Lucindo acredita que o futuro das cooperativas de transporte (mas não somente as de transporte) passa pelo amadurecimento do cooperativismo de plataforma.

“Veja o quanto do mercado em geral têm sido absorvido pelos negócios baseados em plataformas. Temos um caminho a percorrer, principalmente as cooperativas tradicionais. Reverbero: a transformação digital deve estar no plano estratégico das cooperativas, que devem investir na educação, inovação e cultura digital. Devem estar abertas para as rupturas de modelos que se apresentam”, reflete.

A eficiência também é um atributo que o cooperativismo de plataforma tem a oferecer, elucida Evaldo, por meio de:

  • Compartilhamento de cargas
  • Redução do km rodado
  • Possibilidade de maior interação com embarcadores e usuários

Responsabilidade ambiental

Uma das grandes preocupações do setor de transporte é com a responsabilidade ambiental. A queima de combustíveis fósseis representa uma grande fatia das emissões de carbono na atmosfera. Para Lucindo, essa é uma questão que precisa ser enfrentada, lembrando que o cooperativismo deve olhar para a frente, mas sempre mantendo seus valores.

“Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU são um importante norte do qual as cooperativas não devem se afastar. A educação e conscientização dos cooperados com um desenvolvimento sustentável deveria ser um aperfeiçoamento constante. É preciso buscar alternativas aos combustíveis fósseis. A opção pela utilização de veículos de propulsão elétrica também seria uma importante iniciativa”.

A principal barreira, analisa, é o alto custo. Mas, uma política de incentivos adequada para a aquisição de veículos elétricos (por exemplo, isenção de impostos) ajudaria bastante nessa questão. Se um cooperado tivesse a opção de adquirir um veículo elétrico em melhores condições que um veículo de combustível convencional, certamente optaria pelo de menor valor”.

Buscando soluções

O projeto MinasCoop Energia é um exemplo de união de cooperativas para encontrar saídas de energia limpa. “Estamos implantando usinas de energia fotovoltaica. Cada cooperativa construindo a sua usina em um projeto coletivo, com o sistema Ocemg”, diz Evaldo. O projeto apresenta três objetivos:

  1. Custeio da própria energia administrativa e consumo próprio
  2. Ação social com hospitais filantrópicos, que recebem a energia produzida
  3. Produção própria de energia para os carros elétricos das cooperativas de transporte

“Já estamos em negociação para um projeto com fábricas de veículos elétricos para que em breve tempo a gente já tenha a substituição dos nossos carros por carros elétricos e movidos a biodiesel”, conclui Evaldo.

Cooperativismo de atitude

As cooperativas de transporte estão inseridas no contexto de construção coletiva de uma sociedade mais sustentável. Segundo David, as ações em prol do meio ambiente devem ser conjuntas, unindo sociedade, poder público e iniciativa privada. Ele explica que as coops já estão ativas:

“Nesse sentido, já temos em nível nacional ações sendo desenvolvidas por cooperativas na conscientização do seu quadro social no que tange ao descarte correto de pneus e alguns outros insumos que têm impactos direto no meio ambiente, assim como ações de reciclagem de insumos utilizados nas próprias sedes e filiais das cooperativas, e campanhas educativas junto ao quadro social, em muitos casos em parceria com o próprio poder público”.

Ainda há, contudo, muito trabalho a ser feito pela frente. “O Sistema OCB também vem disponibilizando ferramentas importantíssimas, como a implementação do PDGC (Programa de Desenvolvimento da Gestão de Cooperativas) nas Cooperativas, que visam contribuir para os avanços necessários em relação ao tema – inclusive na construção e implementação de planos de melhorias a partir das necessidades identificadas”.

Veículos autônomos

Diferente do otimismo com os veículos elétricos, Lucindo vê a adoção de veículos autônomos com mais ceticismo, “ainda uma realidade distante para nós, aqui no Brasil”. Isso se dá por conta da falta de infraestrutura adequada e atraso na implementação de tecnologias complementares, como o 5G.

David Ribeiro enxerga que, tendo em vista as especificidades do modelo do cooperativismo (modelo societário e legislação), os veículos autônomos não teriam espaço nas cooperativas.

“Dentro da legislação vigente e tudo que foi construído ao longo dos anos no segmento de transporte, o desenvolvimento da atividade é desenvolvido pelo associado por meio do seu veículo, ou por empregado celetista quando o veículo for da cooperativa, onde não cabe, nesse momento, falarmos de veículos autônomos”.

Evaldo acha que os carros autônomos ainda representam uma realidade distante, no Brasil, mas não descarta que eles sejam possam ser parte de uma reinvenção do setor. “As mudanças chegam e precisamos nos reposicionar”.

Conclusão

O futuro dos negócios no cooperativismo de transporte é amplo e complexo. Evaldo alega que esse é um dos ramos que mais tem material para ser trabalhado – algo que está sendo feito, sublinha ele:

“A OCB tem investido muito na questão dos projetos do ramo, principalmente na inovação; um apoio muito grande ao conselho consultivo, com toda a equipe técnica, os pareceres. Isso tem sido importante”, argumenta.

As cooperativas de transporte se colocam como protagonistas de um setor central para o desenvolvimento da economia brasileira. E as mudanças e inovações não devem desacelerar, pelo contrário. “Não estamos vivendo em uma era de mudanças, mas sim em uma mudança de eras”, conclui Evaldo.